Quincas era, há muitos anos, o vigia noturno de uma grande loja de departamentos.
Todas as noites ele tinha por rotina percorrer todas as seções e andares, registrando em uma espécie de caneta eletrônica a sua passagem pelo implacável buttom existente em cada setor da loja.
Por força dos anos de serviço e pela idade que atingira, Quincas já achava monótono o seu trabalho, anelando pela boa hora da sua aposentadoria que já se aproximava.
Como quebra dessa rotina massacrante, lembrava-se do dia em que um ladrão se escondera atrás de um balcão e esperara a loja fechar para praticar os seus furtos.
Deu boas risadas ao lembrar-se de que o tal ladrão, ingenuamente seguro de que não seria surpreendido, e esfaimado, resolveu fazer um lanche na praça de alimentação.
E foi onde o Quincas o encontrou, instalado em uma mesa, deglutindo uma gostosa fatia de pizza, regada com uma cervejinha.
Não demonstrou reação nenhuma ao receber voz de prisão pelo vigilante, que esperou pacientemente que ele terminasse de lanchar.
Certa noite, ao descer silenciosamente a escada, atingindo o piso do vestuário, ouviu vozes. Com os pelos eriçados, pensou estar diante de uma quadrilha de assaltantes e não de um só ladrão.
Ocultando-se por traz de uma pilastra, constatou que a conversa era entre os diversos manequins ali existentes:
- Vocês viram o tarado que esteve aqui hoje? Bolinou-me disfarçadamente como se eu fosse uma mulher de verdade. Falou um belo manequim trajado com um mínimo biquíni amarelinho.
- “Pois olha”, teve um cara aqui que, embora houvesse pilhas e pilhas de calças e camisas para escolher, cismou de querer as que eu estava usando. Senti muita vergonha ao ficar pelado em meio a tantos clientes que circulavam em torno de mim.
- Pois eu fiquei até com pena da velhinha que tentou “puxar um papo” comigo. Coitada. Ou as suas lentes necessitam ser trocadas ou ela tem catarata nos dois olhos, comentou um manequim feminino articulado que foi colocado sentado em um canto de um banco coletivo, para reclame.
- Pior aconteceu comigo: disse um manequim elegantemente trajado.
- Olhem para os meus pés. Um cara de pau teve a coragem de, aproveitando uma desatenção das balconistas, trocar o seu velho sapato cheio de chulé pelo meu elegante e caríssimo sapato de couro de crocodilo.
E a conversa continuou com grande animação.
Quincas não quis interromper. Maravilhado com o que presenciava, introduziu sua “caneta” no buttom e afastou-se pé ante pé.
Resolveu que não contaria a sua aventura a ninguém, pois quem iria acreditar?
No mínimo achariam que ele estaria maluco, com alucinações auditivas ou que a senescência já o havia alcançado.
Melhor mesmo seria ficar “de bico calado”...