Eu morava há dezoito anos no peito de José. Meu hospedeiro era afeito a esportes radicais e, como conseqüência de sua intensa atividade física, eu tinha que trabalhar muito bem para suprir o seu corpo atlético, do sangue necessário ao consumo em seus músculos.
Mas eu não me queixava. Tirando este particular, ele me tratava muito bem: tinha uma alimentação sadia, não fazia uso de drogas, dormia como um recém-nascido e só me fazia bater rápido quando tinha Arlete, sua namorada, em seu aconchego.
Um dia fomos banhar-nos em um rio encachoeirado, em plena floresta tropical. O perfume das flores silvestres, do mato e do solo úmido atapetado com folhas, e as copas das árvores permeadas aqui e ali pelos raios do astro-rei, que iluminavam bromélias e orquídeas, davam mais encanto ao esplêndido visual da cascata que, qual um véu, despencava para uma pequena lagoa, rodeada de grandes pedras aquecidas pelo sol.
José resolveu dar um mergulho, sem conhecer bem o local! Lançou-se de cabeça e, em seguida, senti que alguma coisa não estava bem, pois eu estava recebendo um sangue escuro, pobre em oxigênio. Logo fiquei sabendo a razão, pelo falatório de pessoas que estavam por ali:
- Ele bateu com a cabeça numa pedra submersa. Está inconsciente. Temos que levá-lo para o hospital.
Algumas horas depois, ouvi alguém dizer:
- Morte cerebral!
O que me deixou muito angustiado e com desejo de gritar: mas eu estou vivo! Em seguida ouvi falarem:
- É doador.
Aí então começou a minha odisséia: arrancaram-me da minha morada e, em uma caixa escura, fiquei até me tirarem dali e me transplantarem para um novo peito, que já estava aberto, à minha espera. Por uns momentos, consegui ver como são as pessoas por fora, embora todos ali usassem máscaras.
Eu, que já estava há algum tempo parado, recomecei a bater, mediante a aplicação de alguns choques. Nos dias que se sucederam, as coisas mais importantes que ouvi foram:
- Walter, como você está bem!
O senhor está de alta.
Seja bem-vindo ao lar.
Jazia eu agora no peito de um cinqeentão, bancário de profissão, casado, pai de três filhos, morador de uma pequena cidade interiorana. De hábitos provincianos, pouco trabalho me dava e fui me habituando à rotina morna e metódica de sua vida pacata.
Tudo ia indo muito bem. Para quem tinha uma expectativa de vida de poucos meses, eu revigorei a vida e as esperanças, o que para mim era um motivo de muito orgulho e satisfação pessoal.
Após um ano em minha nova casa, comecei a me preocupar com certas conversas que ouvia: Walter havia emprestado todas as suas economias, acumuladas com muito sacrifício ao longo de muitos anos de trabalho, para um amigo que era digno de toda a sua confiança. Mas ele desaparecera com o dinheiro sem deixar vestígios. Walter agora ficava por longos períodos imóvel e percebi que com frequência chorava convulsivamente.
Um belo dia, sozinhos em casa, ouvi um estampido e, de novo, comecei a receber aquele indesejável sangue escuro do acontecimento de há um ano. Desta feita não houve socorro. Desejei, por um momento, que me levassem para outro peito, mas fui ficando sem forças e acabei parando.
Então pensei: que terrível tempestade se abate sobre a mente de alguém que há apenas um ano agarrara-se com unhas e dentes à possibilidade de continuar vivendo para, depois de tão pouco tempo, pôr fim à vida. Que grande ironia e desperdício, quanto trabalho executado para tão efêmero proveito. Alguém na fila dos transplantes poderia me ter aproveitado melhor.
Assim, levo comigo o irônico e singular epitáfio:
“Aqui jaz um coração jovem, que de maneira trágica, morreu duas vezes.”